No século passado, em datas diferentes, dois grandes cineastas estrangeiros estiveram no Recife: Orson Welles (em 1942) e Roberto Rossellini (em 1958). Ambos teriam vindo a trabalho, mas terminaram trocando o que seria o serviço a ser realizado em Pernambuco, por visitas ao boêmio Bairro do Recife, então conhecido como a mais famosa zona de meretrício da cidade. A presença do primeiro rendeu o curta-metragem That´s a Lero Lero, de Amim Stepple,em 1994. A do segundo inspirou o escritor Cícero Belmar a escrever Rosellini Amou a Pensão de Dona Bombom, em 2005. O livro será relançado no Salão Nobre da Câmara Municipal do Recife, a partir das 18h da terça-feira (7 de maio).
Publicado há 14 anos e duas vezes laureado (prêmios Lucilo Varejão, do Conselho Municipal de Cultura do Recife e o Vânia Souto de Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras), o romance mistura realidade e ficção. E até transformou-se em roteiro de cinema. Seria um filme, hoje, se não fosse a objeção dos herdeiros do cineasta, tido como o papa do neo-realismo italiano. Com a oposição da família, infelizmente, o projeto foi arquivado. Rossellini visitou o Recife com a determinação de filmar o drama retratado no livro Geografia da Fome, de Josué de Castro. “O diretor foi bem recebido pelos intelectuais recifenses, fez visitas de cortesia, foi levado a diversos locais e conheceu a culinária pernambucana. Quando retornou à Europa, simplesmente arquivou o projeto do filme, sem dar justificativas sobre o que levou à decisão”, conta Belmar.
Com seu faro jornalístico – sim, porque além de escritor, Belmar é repórter, e dos bons – ele tratou de resgatar a passagem de Rossellini pelo Recife. E fez uma deliciosa mistura de realidade com a própria imaginação. “Este é um romance especulativo, em que o bom humor prevalece, para tentar responder: por que o cineasta franco italiano desistiu do projeto? Uma resposta que a ficção, com certeza,é capaz de dar”, diz. E completa: “O diretor jamais poderia fazer um filme que tivesse a fome como premissa, se a ele foram servidas deliciosas iguarias do cardápio que orgulha os pernambucanos”, comenta Cícero Belmar, para quem Rossellini ao invés de mergulhar no drama da fome nordestina retratada por Josué, entregou-se à orgia gastronômica.
“Ele esteve em locais onde se fartou das peixadas à moda, pitus, tapioca com sabores diversos, deliciou-se com o licor de pitanga e os bolos de rolo e o Souza Leão. Durante a estada no Recife, um fato chamou a atenção: o elegante diretor fez um roteiro especial. Foi levado pelos anfitriões, a um bar, típico da época, que todos os rapazes e senhores de boas famílias frequentavam para se divertir longe dos olhares das namoradas e esposas”, conta. E acrescenta: “Além dos petiscos gostosos, uísque importado e boa música, o bar tinha belas mulheres como atração”. Na vida real, a noite, claro, foi animada. Na ficção, foi criada a Pensão de Dona Bombom, assim como as irmãs Passarinho, mulheres de vida fácil do romance que… quá quá quá… esnobam o cineasta. “Logo ele, que já fora casado com Ingrid Bergman e teve algo além de uma simples amizade com Marylin Monroe”, ironiza Belmar, que também é imortal da Academia Pernambucana de Letras. Na verdade, sua ficção vai ainda mais longe: “Alguns acontecimentos, inclusive, tiveram uma mãozinha do sobrenatural, contando com a ajuda dos orixás do candomblé, bastante cultuados no Recife. Como já se disse, o romance mistura realidade e ficção, envolvendo notórias figuras das culturas pernambucana e brasileira, gente do povo, além de outras tantas criadas pelo autor, seguindo a ideia e o modelo que consagraram o neo-realismo no cinema”, avisa. A nova edição foi inteiramente bancada pelo escritor.
Veja vídeo sobre “Rossellini Amou a Pensão de Dona Bombom”
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Foto: Divulgação