Campos de concentração urbanos

Compartilhe nas redes sociais…

Duas ações do Prefeito de São Paulo, João Dória (mauricinho, coxinha ou higienista, como queiram classificá-lo), começam a chamar a atenção do País. Depois de uma vitória espetacular nas eleições municipais da maior cidade do Brasil, o tucano inicia sua gestão com medida populista, vestindo-se de gari. Depois, toma duas iniciativas polêmicas: manda apagar os murais que davam um ar da graça à Avenida 23 de Maio. Não satisfeito, confina os moradores de rua sob viaduto, em cercadinhos que lembram “galinheiros”, segundo compara o artista plástico Cildo Oliveira, pernambucano residente em São Paulo.

Sobre os grafites apagados, aliás cobertos com tinta cinza, muitos artistas já se manifestaram. É de se lamentar que um Prefeito não saiba diferenciar o grafite da pichação. Enquanto o primeiro alegra as ruas de todo o mundo e até impõe a presença desses artistas populares em galerias sofisticadas e museus, o segundo não passa de uma manifestação de vandalismo, que emporcalha pontes, monumentos, igrejas, até condomínios particulares. Então, vamos estabelecer as diferenças. Arte é arte, mesmo que seja de rua. E sujeira é sujeira. E acabou.

Leia mais:

Duas costureiras, e dois maridos: um cangaceiro e um gay

No Recife, temos estruturas de pontes e viadutos, prédios velhos, muros, que seriam muito mais tristes se fossem cinzas, da cor do concreto. Que seria do Recife sem os grafites de Derlon, por exemplo? Não são poucos os nossos viadutos, que ficariam muito mais brutais, se não fossem grafitados. Em alguns casos, o grafite tem até função social, como os feitos através do Coletivo Cores do Amanhã. O Prefeito de São Paulo diz que, com São Paulo “limpo” vai resgatar a “auto estima da cidade”. O que será que ele entende por “limpa”? Limpa é uma cidade sem lixo nas ruas, sem monumentos pichados, sem praças e jardins mal cuidados, sem lixo em canais e rios.  O Recife, por exemplo, não é uma cidade limpa, devido a esses problemas. Mas pelo menos a gestão atual respeita a diferença entre grafitagem e pichação. E os  pobres daqui não vivem confinados.

Em São Paulo, no entanto, parece não se ver diferença. O tucano misturou grafitagem e vandalismo em um mesmo saco. “É a gentrificação da cidade. Dória quer tudo “limpo”,  sem pobres nas ruas, pichações nem grafites. Ele não entende que a cidade é dinâmica e não pode ter regras para certas coisas”, critica Cildo. E lembra outra medida polêmica do Prefeito paulista. “Ele colocou todos os sem teto debaixo de um viaduto. E montou um cercado, um galinheiro, onde era um campo de futebol das crianças da área”, diz o artista. Esse negócio de colocar os pobres confinados me lembra uma prática muito comum no Nordeste, no início do século passado, durante as grandes secas. Eram os campos de concentração, práticas anteriores aos campos nazistas.

Como repórter, entrevistei sobreviventes desses campos, no município de Senador Pompeu, no Ceará. As diferenças entre os implantados por Hitler e os observados no Brasil não eram tão gritantes. Cheguei a escrever sobre eles no jornal “O Globo”, onde trabalhei um bom tempo como correspondente no Nordeste. Os campos de concentração brasileiros estão presentes em “O Quinze”, de Rachel de Queiroz. O ex-Governador Miguel Arraes me falava deles, como uma imagem “chocante” e “revoltante”, que guardara de sua infância,  durante as prolongadas estiagens no Ceará.  Talvez essas imagens tenham contribuído para despertar nele a sensibilidade social que marcou sua trajetória histórica.  Os campos de concentração nordestinos voltam a ser abordados na ficção do livro “A Costureira e o Cangaceiro”, por Frances de Pontes Peebles.  Ela o faz rapidamente, e o fato pode até passar despercebido, para quem não está ligado nesse pedaço negro do passado. O romance é inspirado no Nordeste famélico e sem lei, dividido entre o cangaço e o coronelismo, nas primeiras décadas do século 20, onde os flagelados eram segregados pelos governos, para não manchar as cidades dominadas pelos ricos, onde chegavam aos milhares, fugindo da fome e da sede.

Texto e fotos: Letícia Lins / #OxeRecife

Acesse sempre oxerecife.com.br, o Blog a serviço do Recife e de sua gente.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.