“Um país realmente desenvolvido só o é se o problema social estiver solucionado, ou se a desigualdade for desprezível. Países como a Finlândia, Suécia, Dinamarca e Noruega são bons exemplos, pois seus indicadores sociais são excelentes. Já um país com alta disparidade é o Brasil, que ocupa os últimos lugares entre os mais desiguais. Países menos ricos, como seus vizinhos Uruguai e mesmo a Bolívia, têm índices melhores, pois o que mede a desigualdade é como a riqueza é distribuída entre a população, e não a soma das riquezas produzidas. Pois, então, pergunta-se: por que isso ocorre no Brasil? É necessário afirmar que o país carrega uma herança maldita, chamada escravidão, que ainda hoje pesa como chumbo em suas costas, embora esse fato seja apenas superficialmente reconhecido, ou com as consequências reais ignoradas, ou subestimadas. Somado a isso, a sociedade brasileira tem um espólio originário da mentalidade obtusa dos tempos do império, proveniente daqueles barões enfurnados em suas fazendas, verdadeiros feudos, em que reinavam absolutos sobre a massa de escravos cruelmente explorada. Nesses dois fatos, a escravidão e suas nefastas consequências em nossa cultura, estão as raízes de nossa desigualdade social.
Os escravos viviam em condições sub-humanas; eram arrancados brutalmente do solo natal pelos traficantes, metidos acorrentados em navios e transportados ao Brasil, onde aguardavam suas vendas em mercados, e adquiridos pelos compradores. Homens pertencentes a outros, reduzidos à máquina de produção. Nas fazendas, o alimento básico os mantinha trabalhando, até a morte precoce. Eram seres entristecidos, desprovidos de dignidade e aspirações. Muitas vezes morriam de saudades da terra natal, morriam de banzo. Enfim, suas vidas se reduziam ao sofrimento. Proclamada a abolição, os negros libertos foram deixados à própria sorte, sem política ou apoio para a integração. Vitoriosa a república, aquela mentalidade autoritária baronial, o velho costume do relho nas costas, foi herdada e incorporada pelos coronéis da República Velha e pelos políticos originários dessa gente, espalhou-se pela sociedade e perdura até os dias atuais hipocritamente disfarçada de aceitação.
No princípio do século XX, com a modernização do centro do Rio de Janeiro, os pobres, negros e mulatos foram desalojados de seus cortiços e começaram a subir os morros cariocas, dando origem às favelas, que só crescem até os dias atuais. Que se virassem como pudessem, e até hoje se viram como podem. Certa vez perguntaram a Paulo Cézar Caju, negro e craque do Botafogo, por que um preto, quando se torna rico e famoso, começa a assediar loiras exuberantes? Ele, inteligentemente, respondeu: pois a pergunta deveria ser feita ao contrário: por que quando nos tornamos famosos e ricos as loiras vêm nos assediar?… É provável que o repórter tenha se externado de maneira inconscientemente preconceituosa…
De modo geral, a única maneira de um negro ascender no Brasil é através do futebol, como exemplos o demonstram. O primeiro clube a permitir que negros integrassem o seu time foi o Vasco da Gama, porém, somente em 1933. E assim perdura e se manifesta essa mentalidade racista enrustida na sociedade brasileira: sim, sou melhor que você, sou branco, branquinho e de cabelo bom. Mas, persiste a pergunta: por que o Brasil continua tão desigual? Pois, herdada essa mentalidade pela elite brasileira, e, consequentemente, mantendo o poder econômico em suas mãos, ela passou a governar para os próprios interesses, que nunca contemplaram a massa de deserdados.
Getúlio Vargas foi quem primeiro, de fato, se preocupou com o problema social no Brasil, criando a legislação trabalhista. Por isso foi rejeitado pelas elites. Em seu segundo governo, devido às suas políticas nacionalistas e de apoio ao trabalhador, foi pressionadíssimo, e suicidou-se para não ser deposto. João Goulart, seu ministro de trabalho, renunciou ao cargo pelo mesmo motivo, e, em 1964, foi deposto por essa mesma elite rançosa, associada ao capital internacional. Pois bem: e o que de fato significou o golpe de 1964? Constituiu-se na conquista definitiva do estado brasileiro pelas multinacionais, associadas à burguesia industrial brasileira. A partir daí, aquela política natural de as elites governarem para seus interesses acentuou-se, e o país começou a se enriquecer assimetricamente, ou seja, os segmentos a elas associados se enriqueceram, e o povão, a imensa maioria, foi se distanciando, descolando-se dos privilegiados.
Instalou-se então no Brasil contemporâneo uma sociedade de consumo exacerbada, em que os meios de comunicações divulgam diariamente as maravilhas modernas, sonhos de consumo que atingem, desde os guetos miseráveis até os redutos enricados, sofisticados. Todavia, esse consumismo é restrito, mas a mensagem é captada por todos. Enquanto as classes médias sonham e lutam para mais integrar-se ao sistema, os pobres, cada vez mais pobres, se conformam e assumem a própria impotência de consumir, OU, NÃO A ASSUMEM! E buscam-na então pela violência, através do banditismo e outros meios ilícitos. Portanto, devido à imensa desigualdade social, qual é a realidade brasileira contemporânea, e quais são as consequências disso? Pois os ricaços e as classes médias vivem em casas e prédios envolvidos por cercas eletrificadas, em condomínios com câmeras de segurança e mil outros aparatos, temendo ser assaltados ou assassinados, não podendo sequer frequentar certos lugares e nem usarem bens valiosos. E os pobres, geralmente negros e mulatos, aqueles conformados, vivem apartados em guetos periféricos ou mesmo debaixo de viadutos.
E o que aspiram as elites? Desejam que, a despeito das injustiças sociais e do fosso das desigualdades, que os apartados se comportem bem, que baixem as cabeças e assumam suas mazelas pois não querem ser incomodadas… Como a negativa a tal pretensão é compreensível e racionalmente admissível, vive-se o salve-se quem puder brasileiro, que cada vez mais espelha e espalha a desigualdade. Afinal, bandido aceitável é o ricaço, aquele que tem poder de infringir ou de modificar e impor as leis a seu favor, e bandido pobre, negro ou mulato, é aquele ser periférico em quem se mete balas. Enfim, aquele mesmo homem amarrado ao pelourinho em quem, há duzentos anos, descia-se o relho nas costas.
*Aliel Paione é engenheiro, Mestre em Ciências e Técnicas Nucleares pela Universidade Federal de Minas Gerais. Escritor, autor da chamada Triologia do Sol: “Sol e Solidão em Copacabana” (2023), Sol e Sombras (2020), Sol e Sonhos (2017).
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Editado por: Letícia Lins / #OxeRecife
Foto: Divulgação / Acervo pessoal do autor