Pipoca é alimento sagrado?

Ao contrário do que muita gente pensa, pipoca não é só comida de cinema. Se em Pernambuco ela anda pelo escurinho entre filmes e confortáveis poltronas, seu sentido é sagrado na Bahia. Tão sagrado que tanto os povos de terreiros quanto os católicos costumam banhar-se com o milho estourado, para se proteger. A qualquer dia do ano, há pessoas tomando banho de pipoca em frente ao Santuário de São Roque e São Lázaro, que fica no bairro da Federação, e que foi o ponto final da Caminhada Azoany, que ocorreu na última sexta-feira, em Salvador. E com toda pipoca que se tem direito. Como para nós, pipoca sagrada parece estranho e curioso, que tal sabermos um pouco mais sobre a função religiosa desses flocos de milho?

Mais uma vez, recorro ao meu amigo e antropólogo Fernando Batista, estudioso do Candomblé e que reside em Salvador, onde faz doutorado na Universidade Federal da Bahia. “A pipoca ou doburu é o alimento ritual preferido de Omolu, orixá que tem domínio sobre as doenças, detentor dos mistérios da vida e da morte”. E explica a simbologia: “A pipoca é análoga às feridas da pele. A ferida pipocou ou estourou. Não falamos assim? Daí ser esse mesmo alimento utilizado para limpeza espiritual do corpo”.

O antropólogo esclarece que toda festa de rua ou manifestação do povo do candomblé em Salvador tem sempre o milho no cortejo. “Aqui na Bahia,  um ou dois iniciados vão jogando milho branco cozido à frente do cortejo, como se estivessem abrindo caminhos”, diz. E conta que no caso da Caminhada Azoany, “os transeuntes pediam pipoca ora para comer, ora para que as baianas os banhassem ao longo do percurso”.

Durante o cortejo, entre toques e cânticos, pipocas são atirados aos participantes, sejam ou não iniciados. Inclusive quando passam em frente à sede dos Filhos de Gandhy. “No bairro da Federação, pessoas de axé servem comidas de milho nas calçadas: lelê (parecido com angu), munguzá branco, pamonha de carimã”.  No início da rua que leva ao santuário, a pipoca vira uma espécie de oferenda. “Ali há uma gameleira, que é divinizada como o Orixá Iroko”, diz. Ali, as pessoas colocam suas oferendas.

Fernando explica: “Muitas pessoas acendem velas, depositam balaios de pipoca e iscas de coco, e batem a cabeça nas raízes das árvores”, conta ele, informando que para o povo do Candomblé, a árvore é o próprio orixá. Quando estive em Salvador visitei o santuário, a gameleira e, claro, tomei um banho de pipoca, como faz qualquer “turista” de respeito. Outra coisa que me chamou a atenção no cortejo, a julgar pelas fotos que recebi, foi a presença da palha. “ A palha da costa é elemento principal das indumentárias dos orixás Nanã e Omulu”, explica Fernando. E esclarece: “Trata-se de uma família mítica, que reúne, ainda, Oxumaré, Ewa, Ossaim e Iroko, orixás pouco cultuados ou desconhecidos aí em Pernambuco”. E viva a todos os deuses, e também aos orixás, voduns e inquices! E viva a liberdade religiosa!

Veja, no vídeo, o banho de pipoca na Caminhada Azoany, em Salvador:

 

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos e vídeo: Fernando Batista / Cortesia

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